Metaplasia e Displasia Gastrointestinal: conceitos, implicações clínicas e conduta

Metaplasia e displasia gástrica são alterações histológicas frequentes em biópsias endoscópicas, frequentemente mal compreendidas por pacientes e subvalorizadas por profissionais. Este artigo revisa os conceitos fundamentais, o risco de progressão neoplásica, os critérios de vigilância e as condutas recomendadas segundo as diretrizes internacionais, com foco em decisões clínicas baseadas em evidência.

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Apareceu metaplasia ou displasia na biópsia gástrica obtida por endoscopia: o que isso significa e como conduzir?

O achado de metaplasia ou displasia em biópsias gástricas costuma gerar grande ansiedade por parte dos pacientes, sobretudo devido à associação com neoplasias em buscas leigas na internet. Como médicos, é essencial compreender as nuances desses achados para orientar com precisão, evitando condutas excessivas ou omissas.

Embora os termos "metaplasia" e "displasia" possam remeter à oncogênese, trata-se de alterações histológicas da mucosa gástrica que devem ser interpretadas à luz do contexto clínico, do padrão histológico e dos fatores de risco associados.

Definições histológicas e fisiopatologia

Metaplasia
Refere-se à substituição de um tipo celular diferenciado por outro fenotipicamente distinto, porém ainda funcional. Na mucosa gástrica, a metaplasia intestinal (MI) é a forma mais comum e está frequentemente associada a inflamação crônica (gastrite atrófica). É considerada uma alteração adaptativa, e ocorre como resposta a agressões persistentes, como infecção por Helicobacter pylori.

Subdivide-se em:

Metaplasia completa (Tipo I): células com características do intestino delgado, com presença de células caliciformes, absortivas e de Paneth.

Metaplasia incompleta (Tipo II e III): células mais semelhantes às do intestino grosso (colónicas), ausência de células de Paneth, produção de mucina sulfatada, com maior risco de progressão neoplásica.

Displasia
Representa uma alteração arquitetural e citológica epitelial, caracterizada por atipias nucleares, aumento da razão núcleo/citoplasma, hipercromasia, pseudoestratificação e desorganização da maturação celular.

Classifica-se em:

Displasia de baixo grau (DBG): alterações citológicas leves, geralmente com preservação da arquitetura glandular.

Displasia de alto grau (DAG): alterações citológicas marcadas, perda da polaridade celular e distorção arquitetural significativa. Equivale ao conceito de neoplasia intraepitelial de alto grau ou câncer in situ na Classificação de Viena (Categoria 4).

Diagnóstico e avaliação complementar

A endoscopia convencional tem baixa acurácia na detecção visual de metaplasia e displasia. O advento da endoscopia de alta definição, associada a técnicas como cromoscopia e imagem com magnificação, aumenta a suspeição visual dessas lesões, que devem ser obrigatoriamente confirmadas por análise histopatológica.

A coleta de biópsias deve obedecer protocolos validados, como o Sistema de Sydney, e permitir a estratificação de risco segundo os sistemas OLGA (Operative Link on Gastritis Assessment) e OLGIM (Operative Link on Gastric Intestinal Metaplasia Assessment).

Metaplasia: risco de progressão

A metaplasia intestinal isolada, especialmente quando focal e sem atrofia associada, apresenta risco muito baixo de progressão para displasia. A literatura estima um risco anual de transformação em torno de 0,15%.

Porém, a metaplasia intestinal extensa, a metaplasia incompleta, a associação com atrofia gástrica avançada (OLGA III/IV ou OLGIM III/IV) e histórico familiar de câncer gástrico aumentam significativamente esse risco, justificando acompanhamento periódico.

Displasia: conduta conforme grau

Displasia de baixo grau
Pode representar apenas alterações inflamatórias reativas, devendo ser confirmada por patologista experiente.

Quando confirmada, recomenda-se repetição endoscópica em 6 a 12 meses, com avaliação ampliada da mucosa e coleta direcionada de biópsias adicionais.

A associação com metaplasia extensa ou OLGA/OLGIM III/IV reforça a necessidade de vigilância mais intensiva.

Displasia de alto grau
Representa neoplasia intraepitelial com elevado risco de progressão para câncer invasivo (RR > 16).

Deve ser confirmada por dupla leitura patológica, idealmente com expertise em patologia gastrointestinal.

Requer avaliação endoscópica de alta definição, com cromoscopia e magnificação, visando mapear a extensão da lesão e descartar presença de carcinoma subjacente.

O tratamento de escolha é a ressecção endoscópica da lesão (EMR/ESD), que permite estadiamento preciso e tratamento curativo em lesões intramucosas.

Fatores de risco para progressão neoplásica

Modificáveis: infecção por H. pylori, tabagismo, dieta rica em sal/nitritos/defumados.

Não modificáveis: metaplasia incompleta, metaplasia extensa, atrofia avançada, história familiar de câncer gástrico, pertencimento a grupos étnicos de alto risco (América Latina, Ásia).

A erradicação do H. pylori é mandatória, devendo ser confirmada por teste de controle. Dieta balanceada e interrupção do tabagismo são medidas complementares.

Vigilância e recomendações internacionais

Segundo os consensos MAPS II e AGA, a vigilância endoscópica deve seguir o seguinte esquema:

Metaplasia completa, isolada, focal, sem fatores de risco: vigilância não obrigatória.

Metaplasia incompleta, extensa, ou com fatores de risco associados: endoscopia a cada 3 anos.

Displasia de baixo grau: repetição endoscópica em 6 a 12 meses.

Displasia de alto grau: tratamento com ressecção endoscópica.

Exemplos clínicos (casos simulados)

Caso 1 – Metaplasia completa focal sem fatores de risco:
Paciente de 57 anos, sem H. pylori, dieta equilibrada, sem histórico familiar. OLGA I. Conduta: sem necessidade de seguimento endoscópico.

Caso 2 – Displasia de alto grau com risco aumentado:
Paciente de 67 anos, com DAG confirmada em biópsia, história familiar de câncer gástrico, OLGA III. Lesão detectada e ressecada por ESD com achado de câncer intramucoso. Evolução favorável, sem necessidade de tratamento adicional.

Considerações finais

Metaplasia e displasia representam alterações morfológicas da mucosa gástrica com potencial oncogênico, mas que permitem intervenções precoces e curativas quando corretamente diagnosticadas e conduzidas. A chave está na avaliação contextual do achado histológico, na definição do risco individual e na adesão a condutas baseadas em evidência.

Glossário técnico

Metaplasia intestinal: substituição celular gástrica por fenótipo intestinal.

Displasia de baixo/alto grau: alteração epitelial com potencial neoplásico progressivo.

Neoplasia in situ: carcinoma restrito à camada epitelial.

Câncer intramucoso: carcinoma que infiltra mucosa, mas não submucosa.

Cascata de Pelayo-Correa: modelo de progressão da gastrite crônica à neoplasia invasiva.

OLGA/OLGIM: escore histológico de risco baseado em grau e extensão de atrofia e metaplasia.

MAPS II: consenso europeu para vigilância de lesões gástricas pré-neoplásicas.

Classificação de Viena: padronização internacional da gradação de displasia gástrica.

Estado da arte: tecnologias emergentes

Endoscopia de alta definição e cromoscopia virtual: maior sensibilidade na detecção de alterações pré-neoplásicas.

Mucosectomia (EMR) e Dissecção endoscópica submucosa (ESD): técnicas terapêuticas minimamente invasivas com potencial curativo.

Biologia molecular aplicada à patologia gastrointestinal: promissora no estadiamento de risco individualizado.

Referências
Dinis-Ribeiro M et al. Gut. 2024;73(10):1607-1617.
Gupta S et al. Gastroenterology. 2020;158(3):693-702.
Pimentel-Nunes P et al. Endoscopy. 2019;51(4):365-388.
Huang RJ et al. Gut Liver. 2019;13(6):596-603.

Acerca do Instituto MEVY

O Instituto MEVY é uma referência em gastroenterologia, oferecendo informações confiáveis e atualizadas sobre saúde digestiva para médicos e o público em geral. Fundado e dirigido pelo Dr. Eduardo Bonin, especialista renomado na área, o instituto se dedica à educação médica e à conscientização sobre doenças gastrointestinais, sempre com uma abordagem baseada em evidências científicas e acessível para todos.

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